Crónica de Alexandre Honrado
Uma palavra que nunca te direi
Apaga-se o sentido crítico. É a atmosfera que dá origem à sensibilidade.
Medite-se – verbo que requer disponibilidade – sobre a vídeocracia e a angústia sufocante dos primeiros anos do século XXI. Desejámo-lo portador de esperanças, utopias messiânicas que nos pareciam devidas depois de o século XX ter matado milhões de seres humanos, destruindo o lado mais afável que as ideologias podiam conter. Regressámos a modelos medievais incultos, populistas e variavelmente fundamentalistas; à revisitação de uma matriz que já provou ser insuficiente, excessiva e inumana. Hoje, o analfabetismo emocional conduz-nos a gramáticas (trans-)subjetivas, isto é, dependentes do conjunto de representações do mundo real (social e físico) que adquiriram diretamente a partir do original, tal como modelações sentimentais a roçar a indiferença e o desespero do triunfo da insensibilidade.
A vídeocracia – o poder exercido pelas imagens publicadas sobre a formação da opinião pública – parece conter um efeito redutor, quando, à partida, devia proporcionar-nos acesso pleno ao acontecimento, de modo a democratizá-lo, fazendo-o global e de todos. Com esse efeito geram-se conceitos absurdos, como a pós-verdade, neologismo a fazer-nos acreditar que no tempo presente mediático os factos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais.
O impacto da vídeocracia via publicidade, propaganda, TV, cinema, internet – e as suas redes sociais por vezes tão pouco sociáveis: Instagram, Twitter, Facebook, WhatsApp – condiciona-se no formato em que nos chega. Ecrãs: grande, pequeno, minúsculo – o que significa que cada vez mais nos concentramos em cada vez menos. As crianças já abandonaram os televisores, os ecrãs de computador e até os das consolas, para se entreterem na exiguidade dos ecrãs de telemóvel (até nascerem chips capazes de materializar uma imagem a partir de um ponto da pele, em qualquer efeito tridimensional capaz de captar a nossa atenção).
O impacto da vídeocracia está em declínio: já não é a imagem que nos condiciona pelo seu poder, apenas os seus fragmentos. Os corpos sem história das guerras televisivas tornaram-se desvalorizados como os corpos sem história dos filmes de Quentin Tarantino. Como certo personagem – de O Ódio, de Mathieu Kassowitz –, ficámos “fechados na rua”, partilhando o último sentimento de ocuparmos o exílio de um lugar que podia ser habitável.
A nova etapa da vídeocracia consagra o sucessivo apagar do sentido crítico (nem a imagem nos conforta, inquieta ou mobiliza, mesmo que seja a da criança morta nas areias de Lampedusa ou a da Alepo arrasada).
É a atmosfera que dá origem à sensibilidade. E essa, insana, está poluída e a diluir-se como uma velha fotografia de antepassados.
Como na sensação que fica nos corpos a que deceparam um membro – ainda “existe”, embora não esteja lá –, partilhamos uma nova era em que a presença ausente nos faz perder as imagens que, afinal, estão aqui mesmo, para quem as conseguir descortinar.
Alexandre Honrado
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